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    Monte Merínea - Introdução


    FRAGMENTO
    "MONTE MERÍNEA
    VOLUME I - Um Tema Para Assassinos"
    Antiga Introdução

    Era o lugar mais lúgubre que ele poderia ter escolhido para ficar. Havia porta, janelas altas, cadeiras, quadros e tapetes puídos. No centro, um belo piano de cauda, lustroso e novo; a antítese de tudo que o cercava. Havia castiçais espalhados por todo o lugar, mas não havia sequer um único toco de vela. E mesmo que houvesse, muito provavelmente seria inútil: um vento sutil invadia todo o ambiente, entrando pela vidraça quebrada e brincando com a poeira do tempo, indo desaparecer pelas frestas da porta de madeira apodrecida. Nos buracos de ratos, havia guinchos e ruídos, enquanto pequenas aranhas teciam suas teias como se tecessem o destino. Numa das paredes, atrás do piano, quase beirando ao mórbido, cabeças de animais estavam dispostas da forma mais horrenda que alguém pudesse imaginar. E seus olhos de vidro, estáticos, fitavam a mesma figura alta do outro lado da sala: um homem de cartola e fraque, segurando um bastão maior do que ele próprio, meticulosamente polido e lustrado, de cor tão negra quanto o próprio piano ou a sala onde se encontrava.
    Com uma das mãos enluvadas, percorria a superfície áspera e empoeirada de uma cômoda cujas gavetas se encontravam em lugar desconhecido. Com a outra, segurava o bastão firmemente, mas sem apoiar-se nele como seria o lógico. Parecia exatamente o contrário; parecia que o homem apoiava o bastão, como que se assegurando da integridade do objeto. O nó da gravata estava roto, mas assim que ele encontrou o espelho que não refletia nada além da mesma sala havia décadas, ajeitou-o meticulosamente, apesar da luz difusa que penetrava o ambiente. Ele tinha uma vista excelente, a despeito da idade ou da iluminação. Por baixo da cartola eram evidentes os cabelos grisalhos e lisos, penteados com esmero horas atrás para outra ocasião, e o pequeno cravo vermelho em seu bolso ainda estava vivo e sedoso. Alinhou o colarinho, mesmo sendo desnecessário, e passou uma mão enluvada pelo cavanhaque grisalho. Olhos negros encararam os mesmos olhos negros, e ficaram assim por minutos a fio. O que aqueles dois pares de olhos procuravam, nem mesmo seus donos sabiam.
    Estava perfeito.
    - É a nossa vez, caro Sutil – disse ele como que para o nada. Mas ele ouviu a resposta do cajado ecoando em sua mente: Enfim.
    O homem sorriu discreta e alegremente, e se dirigiu ao piano, intocado por poeira ou pelo tempo. Era como se tivesse sido feito ontem, mas estava naquela sala há mais tempo do que o elegante senhor estava no mundo, e ele sabia disso. Seus ancestrais tocaram naquele piano a Grande Peça, e agora seria sua vez. O dia finalmente havia chegado, a porta havia finalmente se aberto para ele.
    Tic-tac.
    Era uma provocação. E ele sabia.
    Seus joelhos estavam a um palmo do banco de madeira defronte ao piano, e quando ele esticou a mão para tocar o tampo que protegia as teclas, estacou. Quase ia esquecendo. De forma banal, ele soltou o cajado no ar, que permaneceu estático, como se tivesse vida própria, de pé no meio da sala. O homem tirou as luvas e colocou-as sobre o piano. Com seus dedos longos e delicados abriu o tampo lustroso, revelando um fino tecido escarlate cobrindo as teclas pretas e brancas. Ele dobrou-o com minúcia e deixou o pano ao lado de suas luvas brancas. Pensou ter visto o cajado estremecer atrás de si, mas ele próprio estava tremendo. E foi com mãos trêmulas que tirou do meio das cordas do piano um escrínio de couro maltratado pelo tempo.
    Ali, preservado e seguro, estava a partitura original da Obra-Prima da família Nouris. O título, "Um tema para assassinos", estava escrito em azul-royal, mas o pentagrama, as claves e as notas eram de um vermelho vívido.
    O homem grisalho sorriu. Ele bem sabia de onde viera aquela tinta vermelha, e estremeceu ao pensar nisso. Morte exalava seu cheiro e sua cor naquela partitura.
    Com um suspiro e sem mais hesitar, ele começou a tocar a música que regia a história de sua família, cujo título definia perfeitamente aquela tradição: "Um Tema para Assassinos".

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